domingo, 28 de abril de 2013

Cuidado com os burros motivados





A revista ISTO É publicou esta entrevista de Camilo Vannuchi. O
entrevistado é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com Pós-Graduação
em administração de empresas pela USP, consultor organizacional e
conferencista de renome nacional e internacional.

'Cuidado com os burros motivados'
 
Em 'Heróis de Verdade', o escritor combate a supervalorização das
aparências, diz que falta ao Brasil competência, e não auto-estima.


ISTO É - Quem são os heróis de verdade?

Roberto Shinyashiki -- Nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de
sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro
importado, viajar de primeira classe. O mundo define que poucas pessoas
deram certo.

Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de
funcionários que não chegaram a ser gerentes. E essas pessoas são tratadas
como uma multidão de fracassados.

Quando olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu à
pena, porque não conseguiu ter o carro, nem a casa maravilhosa. Para mim,
é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa, possa se
orgulhar da mãe.

O mundo precisa de pessoas mais simples e transparentes. Heróis de verdade
são aqueles que trabalham para realizar seus projetos de vida, e não para
impressionar os outros. São pessoas que sabem pedir desculpas e admitiram
que erraram.


ISTO É -- O Sr. citaria exemplos?

Shinyashiki --  Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu
pai, órfão aos sete anos, empregado em uma farmácia. Morávamos em um
bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são meus
heróis. Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem.

Acho lindo  quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito 100% Jardim
Irene'. É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes.

O resultado é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da
população americana. Em países como o Japão, a Suécia e a Noruega, há mais
suicídio do que homicídio.

Por que tanta gente se mata? Parte da culpa está na depressão das
aparências, que acomete a mulher, que embora não ame mais o marido, mantém
o casamento, ou o homem que passa  décadas em um emprego, que não o faz se
sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.


ISTO É -- Qual o resultado disso?

Shinyashiki -- Paranóia e depressão cada vez mais precoce.

O pai quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de
inglês, informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão  aparece.
A única coisa que prepara uma criança para o futuro, é ela poder ser
criança.

Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão
roubando a infância dos filhos. Essas crianças  serão adultos inseguros e
terão discursos hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo
corporativo..


ISTO É - Por quê?

Shinyashiki -- O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a
começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com mais
marketing pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima do que a
competência.

Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que respondia todas
as minhas perguntas com uma ou duas  palavras. Disse que ela não parecia
demonstrar interesse.

Ela me respondeu estar muito interessada, mas como falava pouco, pediu que
eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa. Até porque ela era
candidata a um   emprego na contabilidade, e não de relações públicas.

Contratei-a na hora. Num processo clássico de seleção, ela não passaria da
primeira etapa.


ISTO É -- Há um script estabelecido?

 Shinyashiki -- Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um
presidente de multinacional no programa 'O Aprendiz'?

- Qual é seu defeito?

Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal.

- Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar.

É exatamente o que o Chefe quer escutar. Por que você acha que nunca
alguém respondeu ser desorganizado ou esquecido?

É contratado quem é bom em conversar, em fingir. Da mesma forma, na
maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem o jogo do poder.

O vice-presidente de uma as maiores empresas do planeta me disse:
'Sabe, Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir'.
Isso significa que quem fala a verdade não chega a diretor!


ISTO É -- Temos um modelo de gestão  que premia pessoas mal preparadas?

Shinyashiki -- Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade  de se
preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e  não se
preocupam com o conhecimento.

Muitas equipes precisam de motivação, mas o maior problema no Brasil é
competência. Cuidado com os burros motivados.

Há muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta você assumir uma
função, para a qual não está preparado.

Fui cirurgião e me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão.
Mas tenho a humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus
chefes, que foram sábios em não me dar um caso, para o qual eu não estava
preparado.

Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma neurocirurgia.
O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.


ISTO É -- Está sobrando auto-estima?

Shinyashiki -- Falta às pessoas a verdadeira auto-estima. Se eu preciso
que os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está baixa.

Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara mal-educado  dava uma
gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom.

Hoje, como as pessoas não conseguem nem ser, nem ter, o objetivo de vida
se tornouparecer.

As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E
poucos são  humildes para confessar que não sabem.

Há muitas mulheres solitárias no Brasil, que preferem dizer que é melhor
assim. Embora a auto-estima esteja baixa, fazem pose de que está tudo bem.


ISTO É -- Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos
perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?

Shinyashiki -- Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua
 valorizando os heróis.

Quem vai salvar o Brasil? O Lula.
Quem vai  salvar o time? O técnico.
Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta.
O problema é que eles não vão salvar nada!

Tive um professor de filosofia que dizia:
'Quando você quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha
Elizabeth com uma crise de diarréia durante um jantar no Palácio de
Buckingham'. Pode parecer incrível, mas a  rainha Elizabeth também tem
diarréia. Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de tristeza, já
fez coisas que não deram certo.

 A gente tem de parar de procurar super-heróis, porque se o super-herói
não segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.


ISTO É -- O conceito muda quando a expectativa não se comprova?

Shinyashiki -- Exatamente. A gente não é super-herói nem super-fracassado.
A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de tristeza. Não há nada
de errado nisso.

Hoje, as pessoas estão questionando o Lula, em parte porque acreditavam
que ele fosse mudar suas vidas e se decepcionaram. A crise será positiva
se elas entenderem que a responsabilidade pela própria vida é delas.


ISTO É -- Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki
dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?

Shinyashiki -- Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las faz
minha vida fluir facilmente. Há várias coisas que eu queria e não
consegui. Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos).
Meu filho mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos.
Com uma criança especial, eu aprendi que,  ou eu a amo do jeito que ela é,
ou vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que
 fosse.

Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo. O
resto  foram apostas e erros.

Dia desses apostei na edição de um livro, que não deu certo. Um amigão me
perguntou:
'Quem decidiu publicar esse livro?'
Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.


ISTO É - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?

Shinyashiki -- O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as pessoas
cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três fraquezas:

A primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a
terceira é buscar segurança.

Os Beatles foram  recusados por gravadoras e nem por isso desistiram.
Hoje, o erro das escolas de música é definir o estilo do aluno. Elas
ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith Richards. Os
MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem covers do Bill
Gates.

O que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a desenvolver suas
próprias potencialidades.


ISTO É -- Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?

 Shinyashiki -- A sociedade quer definir o que é certo. São quatro
 loucuras da sociedade:

A primeira é instituir que todos têm de ter sucesso, como se eles não
tivessem significados individuais.

A segunda loucura é: Você tem de estar feliz todos os dias.

A terceira é: Você tem que comprar tudo o que puder. O resultado é esse
consumismo absurdo.

Por fim, a quarta loucura: Você tem de fazer as coisas do jeito certo.

Jeito certo não existe. Não há um caminho único para se fazer as coisas.

As metas são interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade.
Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito.

Tem gente que diz que não será feliz, enquanto não casar, enquanto outros
se dizem infelizes justamente por causa do casamento.

Você pode ser feliz tomando sorvete, ficando em casa com a família ou com
amigos verdadeiros, levando os filhos para brincar ou  indo à praia ou ao
cinema..  

Quando era recém-formado em São Paulo , trabalhei em um hospital de
pacientes terminais. Todos os dias morriam nove ou dez pacientes. Eu
sempre procurei conversar com eles na hora da morte. A maior parte pega o
médico pela camisa e diz:

 'Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei à vida inteira, agora  eu
quero aproveitá-la e ser feliz'.

Eu sentia uma dor enorme por não poder fazer nada. Ali eu aprendi que a
felicidade é feita de coisas pequenas.

Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro
em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado  muito tempo ou perdido
várias oportunidades para aproveitar a vida.

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